A morte do personagem Sargento Lago
Quando entrei na Polícia Militar de São Paulo, no início dos anos oitenta, eu não imaginava que aquele jovem de farda nova e alma cheia de sonhos estava, na verdade, iniciando um longo e tortuoso capítulo de uma história que terminaria com a morte — não do homem, mas do personagem: o Sargento Lago.
Era um tempo de esperança. Eu trazia comigo a herança de um lar simples, mas erguido sobre alicerces inabaláveis: fé, disciplina, honestidade e amor. Na bagagem, não havia dinheiro, mas havia sobras generosas de sonhos e coragem.
Foi essa herança moral, e não o soldo de praça, que me sustentou nas madrugadas frias de plantão, nas dores não ditas, nas lágrimas escondidas sob o quepe. Cada farda suada, cada fuzil apoiado no peito era testemunha de uma juventude entregue ao dever, e ao mesmo tempo, ao desassossego de quem via o mundo mudar sem pedir licença.
Lembro-me com carinho — e um nó na garganta — do meu velho tio, já com cabelos prateados, ainda servindo à corporação. Ver-me chegar a Sargento, laureado de primeiro grau, foi para ele como receber uma medalha que o tempo lhe negara. Apresentava-me com orgulho: “Meu sobrinho já é Sargento e tem PMzito de primeiro grau!” A alegria dele não cabia no peito, e o brilho em seus olhos me dizia que, de algum modo, aquela conquista era nossa. Hoje, olhando para trás, percebo como o mérito era coisa rara em tempos de “quem indica”. O rigor dos critérios transformava cada condecoração em um troféu quase mítico. Hoje, as “couros brancos”, como chamamos as medalhas, multiplicaram-se a tal ponto que perderam o peso da honra. O que antes era símbolo de sacrifício e bravura, banalizou-se na pressa de agradar.
Vieram as glórias, os tombos, os choros e as cicatrizes. Vieram também os projetos que me mantiveram vivo depois da farda.
Na aposentadoria, ainda sentia o sangue cinza bandeirante correr nas veias — não de vaidade, mas de vínculo. Foi assim que nasceram o projeto Policiais Militares do Brasil e o livro Papa Mike – A Realidade do Policial Militar. Um ano inteiro percorrendo o país, ouvindo histórias, filmando, registrando. Cada rosto, cada voz, cada lágrima era um espelho meu.
Também a música me acompanhou. Canções como Rota Tá Tá, Profissão Coragem e Somos a Polícia Militar ecoaram nos quartéis e rádios do Brasil, como hinos de um tempo em que ainda havia brilho no ideal.
Mas o tempo é um mestre silencioso. Ele apaga o brilho das fardas e apura o brilho da alma. Vieram os convites para os aniversários de batalhão, os churrascos, as reuniões de antigos companheiros. Fui a alguns. Depois, já não fui mais. Não era desdém — era distância. Distância de um tempo que ficou preso em fotografias amareladas. Até os meus três CDs, que outrora eram motivo de orgulho, já não despertavam em mim vontade de ouvir.
Um dia, conversando com o coronel Ramírez, amigo dos tempos de estrada, ele me disse emocionado: “Lago, você não pode parar.” Mas dentro de mim, algo já havia parado. Eu sentia que o Sargento Lago — o personagem que o mundo via — já se despedia, devagar, como quem fecha o portão da caserna pela última vez. Então, decidi voltar. Não para os quartéis, mas para as origens.
O menino de outrora, criado num lar evangélico, reencontrou o caminho que os ventos da vida haviam soterrado sob a poeira das vaidades. Voltei para Jesus. E foi como respirar depois de muito tempo debaixo d’água.
Lembrei-me dos cultos domésticos com meus pais e meus treze irmãos. Das orações ao redor da mesa. Das vozes afinadas, meio desafinadas, mas cheias de fé. Recordei os cultos ao ar livre, a luz de lampiões, e o conjunto Libertos por Cristo, com o qual eu cantava meses antes de ingressar na PM, na Assembleia de Deus da Vila Olinda, onde meu pai era pastor.
E como esquecer o círculo de oração que eu mesmo dirigia o conjunto vocal aos dezoito anos, ladeado por senhoras idosas e piedosas, cujas orações pareciam tocar o céu?
Naquele reencontro, compreendi que a morte do Sargento Lago não era uma tragédia — era uma libertação.
O homem que serviu ao Estado por décadas, agora servia a um Reino que não tem fim. E para marcar essa nova caminhada, deixei morrer o sobrenome que simbolizava o passado e ressuscitei o Souza — o nome do meu pai, o mesmo que ostentou com bravura na Segunda Guerra Mundial.
A troca do nome não foi mero capricho: foi um batismo. Um símbolo de ruptura com tudo que me afastara de Deus.
Hoje, componho hinos para o Céu. Enquanto antes eu exaltava os heróis de farda, agora canto sobre o verdadeiro Herói que venceu a morte e salvou a humanidade.
Uma das canções que mais me toca diz: “Aonde eu quero mesmo é morar no Céu.” E é isso mesmo.
Não há mais honra que se compare à de servir a Jesus.
Se antes a minha voz ecoava em rádios e palcos defendendo a corporação, hoje ecoa através da Web Rádio Pavio Que Fumega, anunciando a mensagem do Evangelho puro e simples.
Não busco holofotes, busco corações.
O rádio, diferente dos palcos, não ilumina o rosto do mensageiro — ilumina a mensagem. E é nela que eu encontro sentido.
O personagem Sargento Lago morreu, sim. Mas o homem — o servo, o crente restaurado — renasceu em Cristo.
Agora, combato outro tipo de guerra: a contra as heresias, os modismos e as distorções que têm banalizado o Evangelho. E sigo em frente, com fé, esperança e a doce certeza de que a farda que hoje visto é espiritual — lavada no sangue do Cordeiro.
Se um dia alguém reler os meus relatórios de vida, quero que encontrem neles apenas uma constatação: “Missão em andamento.” Porque a jornada não terminou — apenas mudou de direção. Antes, eu marchava sob o comando humano; agora, sigo guiado pela vontade de Deus. O mesmo zelo que um dia dediquei à farda, hoje consagro ao Reino dos Céus.
E se algum antigo companheiro de caserna ler estas linhas, deixo aqui mais do que um simples convite — deixo um alerta que pode transformar a sua vida, assim como transformou a minha: Volte-se para Jesus. Ainda há tempo de se alistar no Exército Celestial, onde o Comandante Supremo é o próprio Cristo e onde a vitória já foi conquistada na cruz.
E quando soar o toque final — não o toque da despedida, mas o da vitória — que possamos marchar lado a lado, não mais pelas ruas da cidade, mas pelas ruas de ouro da Nova Jerusalém.
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